O medo e os muros (Brasil e o Mundo)*
medo é o sentimento mais bem distribuído no mundo, mesmo se a cada um cabe um muro diferente.
Há os que, como os cariocas, temem a violência da cidade. Esses experimentam na pele uma inversão histórica: as cidades que originalmente se construíram para dar segurança, no interior de seus muros, aos que ali viviam, deixando do lado de fora os inimigos, hoje se transformaram em campos de batalha entre seus habitantes. Aqui o asfalto teme a favela, que teme a polícia, que teme o bandido, que teme a polícia, que teme a favela, que teme o asfalto. Os muros crescem em torno das casas, dos prédios e condomínios. Mas não só aqui. Nos Estados Unidos, oito milhões de pessoas vivem em condomínios com segurança privada e câmeras.
Arquitetos e urbanistas aderem à estética do medo, suas paredes são muros com pequenas escotilhas. Brian Murphy, um arquiteto americano, construiu uma casa de luxo entre as paredes de um edifício em ruínas e cobriu-a de grafites para melhor a disfarçar, integrada na decadência da rua. Se a arquitetura oferece um completo painel da barbárie à civilização, o contrário também é verdadeiro.
Crescem os muros dos presídios de segurança máxima na mesma velocidade em que se cavam túneis.
Crescem muros nas fronteiras de povos inimigos, como na Palestina, mas também lá se cavam túneis para ir buscar do outro lado reféns e vítimas.
Muros separam países amigos como o México e os Estados Unidos, tão amigos que os mexicanos querem ir morar lá e morrem no deserto às portas da terra prometida.
Um muro separa a Espanha daquele ponto em que seu litoral quase toca a África, o continente dos imigrantes náufragos que se esgueiram onde encontram uma praia para atracar seus barcos e sonhos.
Uma injustiça inerente ao mundo globalizado permite que o capital viaje sem passaporte e sem alfândegas, escolha onde se instalar, aufira lucros e vá embora, enquanto quem trabalha fica confinado às suas fronteiras, forçado a aceitar as condições adversas que a mobilidade do capital impõe. É pegar ou largar. No fim das contas, ser largado. Mais um náufrago em terra firme.
A desigualdade que se aprofunda entre países ricos e pobres, entre ricos e pobres dentro de um mesmo país, explica as migrações e as favelas, o que já foi dito e redito.Todos sabemos que a desigualdade é a argamassa dos muros.
Onde crescerão os próximos muros? Eles são a metáfora do medo onipresente.
Paradoxalmente, enquanto o mundo virtual aproxima os distantes, a vida real constrói o muro que separa os mais próximos.
Imperceptíveis, crescem dentro de nós muros de indiferença, que nos separam uns dos outros.Rompidos os laços de pertencimento, estamos condenados à dança das cadeiras da competição.
Desunidos, o sentimento de ameaça pousa no corpo. Nem na nossa própria pele estamos seguros. O medo da doença se faz, então, obsessão preventiva.Tudo é perigoso, o peso, a pressão, o colesterol, o sexo, a comida envenenada, as artérias esclerosadas pelo sedentarismo. A prevenção não diminui a angústia. Aumenta o consumo de drogas e de antidepressivos. O corpo é a última fronteira contra a ameaça de morte que representa o fato de estar vivo.
De onde provém toda essa ansiedade que constrói muros internos e externos? Que mundo demente está gerando tanto medo, um tal produto de infelicidade bruta?
Do que sofremos, afinal? De depressão ou de legítima tristeza?
Chamar a depressão de tristeza já é recuperar a lucidez. A tristeza tem causa e pede reação. Não é a neblina da depressão, quando aceitamos como fatal e inevitável o que estamos vivendo dentro de nós mesmos, em nosso país e no planeta. Se antes anunciávamos com a força da fé que a História estava do nosso lado e que os amanhãs cantariam, deprimidos, com a mesma força dogmática, afirmamos que ela está contra nós. Daí a paralisia. O contrário simétrico do sentido da História é a História sem sentido. “Cheia de som e de fúria”, um baile funk.
Ora, a História não fala antes da hora, não promete qualquer paraíso. Resta viver sem bússola nessa bola girando, sem que saibamos por quê, no universo indevassável. É nesse mar de incertezas que construiremos alguma alegria.
E se o mundo regido pelo lucro estiver redundando em imenso prejuízo? E se fosse melhor para todos diminuir desigualdades criando um mundo não de iguais — que felizmente não somos — mas de semelhantes? E se puséssemos nisso toda a energia e inteligência coletivas, inventando soluções nunca exploradas? Se começássemos, modestamente, pela nossa cidade?
Edgar Morin, no seu “Evangelho da Perdição”, enfrenta o “silêncio desses espaços infinitos” que amedrontava Pascal. Sua pregação é simples. Sejamos solidários, não como acreditam os religiosos, para nos salvarmos, mas porque estamos perdidos. E só temos uns aos outros, partilhando o que sobrou — água, terra, energia — de um planeta finito e solitário.
Impraticável? Esperemos que não. Porque, caso contrário, o resto será o silêncio nas ruínas dos muros.
*ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA é escritora. E-mail: rosiska.darcy@uol.com.br.
Há os que, como os cariocas, temem a violência da cidade. Esses experimentam na pele uma inversão histórica: as cidades que originalmente se construíram para dar segurança, no interior de seus muros, aos que ali viviam, deixando do lado de fora os inimigos, hoje se transformaram em campos de batalha entre seus habitantes. Aqui o asfalto teme a favela, que teme a polícia, que teme o bandido, que teme a polícia, que teme a favela, que teme o asfalto. Os muros crescem em torno das casas, dos prédios e condomínios. Mas não só aqui. Nos Estados Unidos, oito milhões de pessoas vivem em condomínios com segurança privada e câmeras.
Arquitetos e urbanistas aderem à estética do medo, suas paredes são muros com pequenas escotilhas. Brian Murphy, um arquiteto americano, construiu uma casa de luxo entre as paredes de um edifício em ruínas e cobriu-a de grafites para melhor a disfarçar, integrada na decadência da rua. Se a arquitetura oferece um completo painel da barbárie à civilização, o contrário também é verdadeiro.
Crescem os muros dos presídios de segurança máxima na mesma velocidade em que se cavam túneis.
Crescem muros nas fronteiras de povos inimigos, como na Palestina, mas também lá se cavam túneis para ir buscar do outro lado reféns e vítimas.
Muros separam países amigos como o México e os Estados Unidos, tão amigos que os mexicanos querem ir morar lá e morrem no deserto às portas da terra prometida.
Um muro separa a Espanha daquele ponto em que seu litoral quase toca a África, o continente dos imigrantes náufragos que se esgueiram onde encontram uma praia para atracar seus barcos e sonhos.
Uma injustiça inerente ao mundo globalizado permite que o capital viaje sem passaporte e sem alfândegas, escolha onde se instalar, aufira lucros e vá embora, enquanto quem trabalha fica confinado às suas fronteiras, forçado a aceitar as condições adversas que a mobilidade do capital impõe. É pegar ou largar. No fim das contas, ser largado. Mais um náufrago em terra firme.
A desigualdade que se aprofunda entre países ricos e pobres, entre ricos e pobres dentro de um mesmo país, explica as migrações e as favelas, o que já foi dito e redito.Todos sabemos que a desigualdade é a argamassa dos muros.
Onde crescerão os próximos muros? Eles são a metáfora do medo onipresente.
Paradoxalmente, enquanto o mundo virtual aproxima os distantes, a vida real constrói o muro que separa os mais próximos.
Imperceptíveis, crescem dentro de nós muros de indiferença, que nos separam uns dos outros.Rompidos os laços de pertencimento, estamos condenados à dança das cadeiras da competição.
Desunidos, o sentimento de ameaça pousa no corpo. Nem na nossa própria pele estamos seguros. O medo da doença se faz, então, obsessão preventiva.Tudo é perigoso, o peso, a pressão, o colesterol, o sexo, a comida envenenada, as artérias esclerosadas pelo sedentarismo. A prevenção não diminui a angústia. Aumenta o consumo de drogas e de antidepressivos. O corpo é a última fronteira contra a ameaça de morte que representa o fato de estar vivo.
De onde provém toda essa ansiedade que constrói muros internos e externos? Que mundo demente está gerando tanto medo, um tal produto de infelicidade bruta?
Do que sofremos, afinal? De depressão ou de legítima tristeza?
Chamar a depressão de tristeza já é recuperar a lucidez. A tristeza tem causa e pede reação. Não é a neblina da depressão, quando aceitamos como fatal e inevitável o que estamos vivendo dentro de nós mesmos, em nosso país e no planeta. Se antes anunciávamos com a força da fé que a História estava do nosso lado e que os amanhãs cantariam, deprimidos, com a mesma força dogmática, afirmamos que ela está contra nós. Daí a paralisia. O contrário simétrico do sentido da História é a História sem sentido. “Cheia de som e de fúria”, um baile funk.
Ora, a História não fala antes da hora, não promete qualquer paraíso. Resta viver sem bússola nessa bola girando, sem que saibamos por quê, no universo indevassável. É nesse mar de incertezas que construiremos alguma alegria.
E se o mundo regido pelo lucro estiver redundando em imenso prejuízo? E se fosse melhor para todos diminuir desigualdades criando um mundo não de iguais — que felizmente não somos — mas de semelhantes? E se puséssemos nisso toda a energia e inteligência coletivas, inventando soluções nunca exploradas? Se começássemos, modestamente, pela nossa cidade?
Edgar Morin, no seu “Evangelho da Perdição”, enfrenta o “silêncio desses espaços infinitos” que amedrontava Pascal. Sua pregação é simples. Sejamos solidários, não como acreditam os religiosos, para nos salvarmos, mas porque estamos perdidos. E só temos uns aos outros, partilhando o que sobrou — água, terra, energia — de um planeta finito e solitário.
Impraticável? Esperemos que não. Porque, caso contrário, o resto será o silêncio nas ruínas dos muros.
*ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA é escritora. E-mail: rosiska.darcy@uol.com.br.
3 Comments:
Gostei, o começo como você havia me adiantado, está tão bom qto o meio, e o meio por sua vez tão bom qto o fim. Abraços
Really amazing! Useful information. All the best.
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Great site loved it alot, will come back and visit again.
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